terça-feira, 23 de agosto de 2011

Hoje em dia, somos todos escravos.

Em nossa sociedade pseudoliberal, porém cheia de pudores e coisas sob o tapete, é interessante observar que, enquanto o vício em drogas ilegais – começou com maconha, depois ecstasy, LSD, agora até cocaína vem se tornando aceitável nas festinhas de jovens*, sem falar nos psicotrópicos** – enquanto o álcool, conhecido pelo menos desde os tempos de Noé (o primeiro bebum registrado), é, ao mesmo tempo enaltecido entre jovens e velhos, seja como estimulante para tímidos, ansiolítico para “acelerados”, ou simplesmente prova de autossuficiência (“Eu bebo pra caralho uhuu!”) e condenatório a quem dele abusa.

[*Tá certo que cocaína mesmo era a puríssima, colombiana, que os yuppies cheiravam nos 1980s. Nada da farinha cara e ruim dos ripongos e disco-dancers, tampouco dessa tranqueira de R$ 20 que a molecada vem usando em qualquer boteco.

**Havia pouco quem usava qualquer tarja-preta era “maluco”, “gardenal” (olha o preconceito dentro do preconceito aí), hoje é GRAMUROZO falar
“ai, vou chapar de Rivotril”... perdi o momento histórico em que os remédios psiquiátricos passaram de estigmatizantes a assunto para as redes sociais.]

Ao mesmo tempo em que o toxicômano é tratado como doente, coitadinho, alguém que precisa de ajuda – e olha que, mesmo no esculacho institucionalizado em que vivemos, não é tão simples assim descolar farinha, pedra e pico –, uma vítima das fraquezas humanas, da necessidade de pertencer a grupos/tribos e de agradar a eles, o álcool, igualmente celebrado, estimulado e, importante, MUITO MAIS BARATO, LEGALIZADO E DE FACÍLIMO ACESSO, DESDE SEMPRE, se torna uma desgraça para o alcoólatra: este é taxado de vagabundo, bebum, lixão, podre, cachaceiro, pudim-de-cana, alguém [in]digno de pena, que se arrasta pela existência, que cai pelas ladeiras e jamais curar-se-á.

Aí vem a maior distorção de raciocínio: pensamos que as drogas pesadas, uma vez que a maioria de nós não faz uso delas, são inerentemente perigosas, sem que se perceba que a imensa maioria dos que usam cocaína, por exemplo, o faz de modo “recreativo”, sem dependência. Maconha, então, nem se fala. Até crack há quem consiga usar e sair do abismo.

Já o álcool, só porque todos bebem sempre, das reuniões familiares aos churrascos da firma, cai logo a pecha de “fraco” sobre o que abusa do “mé”; afinal, eu uso, você usa, todo mundo usa, por que ele não se controla?

Em vez de pensarmos que esse é justamente o perigo, a banalização/aceitação, além do fácil acesso e o baixo preço, que faz com que tantos se viciem e, pior, tenham imensas dificuldades em se cuidar.

Tenho muito mais compaixão pelo tiozão pobre que só se fode na vida e acaba viciado na cachacinha que serve de anestesia existencial do que o #ClasseMédiaSofre que enfia o nariz onde não é chamado e depois vai chorar as pitangas numa clínica particular.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Inútil paisagem

Meio-dia e seis.

Iam e vinham pessoas e trens nas plataformas da estação movimentada quando se deu conta de que as pessoas e até as máquinas pareciam apressadas demais, tão preocupadas com horários e destinos que nem se davam conta da extrema dor daquele céu de azul incrível.

Enquanto limpava com o lenço de seda o suor que escorria da testa e espantava as moscas oportunistas, cuspia a fumaça das locomotivas e levava esbarrões dos transeuntes absortos na rotina e nos compromissos e tentava fixar os olhos nos olhares alheios a ele e a tudo mais, no afã de receber um pouco de atenção silenciosa.

Pensava no vazio em que vagavam aquelas órbitas que pareciam fitar o Nada. Por que aquele súbito interesse na existência de estranhos? Sempre se considerara individualista, até egoísta, diriam alguns, imerso demais nos próprios planos, segredos, sonhos e problemas para pensar em gente que jamais vira e que provavelmente jamais veria novamente. Seria carência, solidão ou mero teste de quem não tinha o que fazer enquanto o próximo trem não vinha?

Sentiu falta de um cigarro. Os trilhos tremulavam sob o sol e o vento quente que descia espiralado e invadia as plataformas. Na espera, homens liam jornais, mulheres liam livros. Vendedores ambulantes e crianças maltrapilhas esperavam a fiscalização passar para vender e pedir coisas. Pensou mais uma vez no calor e se lembrou do quão distante estava de um banho.

O relógio da estação parecia ora avançar demais, ora nem se mexer. Pensava no gosto, no cheiro e nas profundezas de cada cidadão e cidadã que, longe de casa, buscava fazer sua vida e cumprir seus compromissos. Ninguém ali parecia passear. Ou então eram as condições precárias do transporte metropolitano que deixavam o cenho das pessoas tão grave.

Todos os pensamentos, porém, evanesceram com a chegada do trem. Tomou nas mãos uma lata de cerveja que estava em sua bolsa, mesmo sendo proibido o consumo de álcool na estação, e olho para o horizonte de prédios velhos e morros suburbanos cheios de barracos. Suspirou entre o alívio e a angústia e adentrou o vagão, se espremendo estoicamente entre os outros passageiros no vagão de trinta anos atrás.

Sentiu-se estranhamente livre sob o sol perpendicular daquele dia cortado ao meio feito fruta passada demais.