quinta-feira, 23 de maio de 2013

Estar sendo. Ter sido.

A nostalgia da modernidade chegou definitivamente ao futebol.

Faz parte do Ser revisitar momentos do passado, às vezes aleatórios e quase sempre desimportantes em suas épocas, em narrativas heroicas e cheias de nostalgia. O passado é sempre idealizado, somos incorrigivelmente complacentes como nossos erros e as vicissitudes do que se foi. Até dos relacionamentos fracassados carregamos ao presente muito mais as coisas boas que as ruins.

Nossa infância era melhor porque brincávamos de chinelo de dedo na rua em vez de ficarmos na internet. Os namoros eram melhores porque eram mais inocentes. As propagandas tinham aquele romantismo meio tosco (aquela tosqueira meio romântica). Ninguém percebe que qualquer memória dessas é boa não em-si, mas por remeter à infância. Passar três dias pra conseguir baixar uma mp3 era uma droga, você se lembra disso com carinho tanto porque provavelmente era jovem à época, por ter sido um período de descoberta da informática para maioria das pessoas no país.

Cada edição do Oscar sempre parece pior e com mais injustiças na premiação – até porque é difícil um filme ser considerado clássico sem o teste do tempo –, no YouTube, qualquer música do meio dos 1990s pra cá é automaticamente “melhor do que essas porcarias de Restart e funk” mesmo que o vídeo em questão seja do Tonho Matéria ou de Luan & Vanessa, e bandas que eram terceira divisão em suas épocas, como Soul Asylum e, sei lá, Lagoa 66, ganham status de cult.

Gente que sequer procura saber de história da literatura desde que saiu do Ensino Médio (Colegial, em nosso tempo) reclama de que “não tem nenhum escritor novo que presta”.

Já no futebol, de uns dois anos para cá – não por acaso quando o Corinthians passou de primo pobre para primo rico do futebol brasileiro – criou-se um “inconsistente coletivo”, alimentado pela modernização dos estádios (agora “arenas”) e a chegada da Copa, de que o futebol brasileiro era bom mesmo até 1995.

Isso significa que as pessoas têm saudade de estádios caindo aos pedaços, filas enormes para comprar ingresso, craques indo embora às dezenas, viradas de mesa, regulamentos esdrúxulos (por vezes incompreensíveis), pouquíssimas transmissões pela TV e, sobretudo violência, muita violência, dentro do estádio e nos seus arredores, sem falar em como as mulheres eram hostilizadas na arquibancada.

Na memória delas estão apenas os primeiros títulos de seu clube, ou a época de fila que confirmou sua paixão, o tempo em que seu pai o levava ao estádio e pagava um sanduíche de pernil no final.

Claro que havia coisas melhores na época: bandeiras liberadas, ingressos e demais produtos do time (se bem que só havia o fardamento mesmo à venda) mais baratos, estaduais fortalecidos, seleção (com muitos jogadores atuando aqui) mobilizando as pessoas... mas toda época é assim, tem coisas piores e melhores.

O resto é o glacê de sentimentalismo que colocamos no que já foi para que possamos revisitá-lo com bom gosto naqueles momentos em que tudo parece ruim e envelhecido, e dá saudade de quando as coisas eram mais novas e coloridas.
                                                            

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[Sartre, n’A Náusea (1938), coloca nas palavras do protagonista Antoine Roquentin uma genial reflexão sobre a passagem do tempo que explica isso obviamente muito melhor do que eu.]

“Eis o que pensei: para que o mais banal dos acontecimentos se torne uma aventura, é preciso e basta que nos ponhamos a narrá-lo. É isso que ilude as pessoas: um homem é sempre um narrador de histórias, vive rodeado por suas histórias e pelas histórias dos outros, vê tudo o que lhe acontece através delas; e procura viver a sua vida como se a narrasse.

Quando se vive, nada acontece. Os cenários mudam, as pessoas entram e saem, eis tudo. Nunca há começos. Os dias se sucedem aos dias, sem rima nem razão: é uma soma monótona e interminável. De vez em quando se procede a um total parcial, dizendo: faz três anos que viajo, três anos que estou em Bouville. Também não há fim, nunca deixamos uma mulher, um amigo, uma cidade de uma só vez. E também tudo se parece: Xangai, Moscou, Argel, ao fim de 15 dias é tudo igual. Por alguns momentos – raramente – avaliamos a situação, percebemos que nos envolvemos com uma mulher, que nos metemos numa confusão. Por um átimo.

Depois disso o desfile recomeça, voltamos a fazer as contas das horas e dos dias. Segunda, terça, quarta. Abril, maio, junho. 1924, 1925, 1926.

Viver é isso. Mas quando se narra a vida, tudo muda; simplesmente é uma mudança que ninguém nota: a prova é que se fala de histórias verdadeiras. Como se fosse possível haver histórias verdadeiras; os acontecimentos ocorrem em um sentido e nós os narramos em sentido inverso. Parecemos começar do início: ‘Era uma bela noite de outono em 1922. Eu era escrevente de tabelião em Marommes.’ E na verdade foi pelo fim que começamos. Ele está ali, invisível e presente, é ele que confere a essas poucas palavras a pompa e o valor de um começo.

‘Estava passeando, saíra do vilarejo sem perceber, pensava em meus problemas de dinheiro.’ Essas frases, tomadas pelo que simplesmente são, significam que o sujeito estava absorto, deprimido, a cem léguas de uma aventura, exatamente nesse tipo de estado de espírito em que se deixam passar os acontecimentos sem vê-los. Mas o fim, que transforma tudo, já está presente. Para nós o sujeito já é o herói da história. Sua depressão, seus problemas de dinheiro são bem mais preciosos do que os nossos: doura-os a luz das paixões futuras.

E o relato prossegue às avessas: os instantes deixaram de se empilhar uns sobre os outros ao acaso, foram abocanhados pelo fim da história que os atrai, e cada um deles atrai por sua vez o instante que o precede: ‘Era noite, a rua estava deserta.’ As frases são lançadas negligentemente, parecem supérfluas; mas não caímos no logro e a deixamos de lado: é uma informação cujo valor compreenderemos depois. E temos a impressão de que o herói viveu todos os detalhes dessa noite como anunciações, como promessas, ou até mesmo de que vivia somente aqueles que eram promessas, cego e surdo para tudo que não anunciava a aventura. Esquecemos que o futuro ainda não estava ali; o sujeito passeava numa noite sem presságios, que lhe proporcionava de cambulhada suas riquezas monótonas, e ele não escolhia.

Quis que os momentos de minha vida tivessem uma sequência e uma ordem como os de uma vida que recordamos. O mesmo, ou quase, que tentar capturar o tempo.”